Pergunta: Fiz um empréstimo informal a uma pessoa de confiança. Agora ele está dando todo tipo de desculpas e evita me pagar. Estou entalado com isso, em um ciclo de frustração, ressentimento e tensão financeira. O que saiu errado?
Não é muito convencional na dialética talmúdica comparar a Torá a Shakespeare, ainda que tenhamos algo importante a aprender da comparação entre as sabedorias divina e secular.
A Torá conta-nos que emprestar dinheiro a alguém em necessidade é uma obrigação vital e nos adverte com severidade a emprestar mesmo que estejamos próximos de um ano sabático, cuja liberação de dívidas traz um perigo maior de calote: "Guarda-te para que não haja uma coisa perversa no teu coração, nem digas, 'Aproxima-se o sétimo ano, o ano sabático', de modo que o teu olho seja mau para com teu irmão (...)" (Deuteronômio 15:9).
Nossos Sábios contam que o mandamento de emprestar dinheiro é ainda maior do que o de fazer caridade (1). Um empréstimo preserva a dignidade do receptor e constitui um voto de confiança daquele que empresta, que demonstra convicção na capacidade do outro ser auto-suficiente.
Como isso se enquadra na inegável sabedoria secular de Apolônio, que aconselhou: "Nem que me emprestem nem que eu empreste, pois assim se perde tanto o empréstimo quanto o amigo"?
A resposta é que junto com o mandamento de emprestar, a Torá proporciona uma estrutura para impedir que esta importante mitsvá não se torne um obstáculo para relações harmoniosas.
Uma parte desta estrutura obriga aquele que pega emprestado a pagar o empréstimo, como discutimos em uma
coluna anterior. Essa rígida obrigação religiosa quanto a quem pegou emprestado motiva-o a pagar o empréstimo o mais rápido possível e a evitar tomar emprestado quando imagina que será incapaz de devolver o dinheiro. O Shulchan Aruch, o código autorizado da lei judaica, determina: "É proibido àquele que pega emprestado receber um empréstimo, gastá-lo excessivamente e desperdiçá-lo, de modo que o credor seja deixado sem qualquer meio de cobrar" (2), exigência que se aplica explicitamente a um devedor que zela por sua integridade, incluindo um erudito da Torá.
Outro fator igualmente importante é a grande responsabilidade que a lei judaica impõe ao processo de emprestar. Segundo a nossa tradição, empréstimos "informais" são impróprios e, aliás, proibidos. O Shulchan Aruch estabelece que é proibido emprestar levando-se em conta somente a boa vontade de quem pede o empréstimo. É necessário haver testemunhas, um documento válido ou alguma espécie de garantia (3). A razão para isso é que emprestar sem qualquer garantia cria uma grande tentação por parte do devedor em demorar ou em se negar a pagar.
Outro aspecto deste processo é que, independentemente da grande importância do mandamento de emprestar, não somos obrigados a emprestar a alguém que consideramos que usa o dinheiro de maneira irresponsável. De fato, o Shulchan Aruch diz que é melhor não emprestar dinheiro a este indivíduo (4), pois trata-se justamente o caso em que se perde o empréstimo e o amigo.
A Torá nos diz que seus mandamentos não estão "(...) nos Céus para dizeres: 'Quem subirá por nós aos Céus, que o traga a nós e nos faça ouví-lo, para que o observemos?" (Deuteronômio 30:12). As obrigações que parecem difíceis de executar, como fazer empréstimos úteis, são parte de um acordo com uma estrutura legal e social que tornem nossas obrigações com a beneficência possíveis e até mesmo agradáveis. Isso inclui executar nossas transações econômicas com o maior grau possível de transparência e responsabilidade.
É claro que não há nada de errado em emprestar sem documentação se você deixar claro a quem contraiu o empréstimo que ele pode pagar quando puder. Neste caso, você jamais poderá levá-lo aos tribunais. Desde que o prazo do empréstimo jamais estará vencido, o devedor não tem razão para negá-lo. Agora, se você, que emprestou, considerar este um empréstimo sério, então deve insistir para que seja estabelecido de modo formal, para se assegurar que o devedor entende as suas expectativas e que você poderá exercer, caso necessário, os seus direitos legítimos.
O Midrash nos descreve as origens do projeto de D'us para o mundo como se segue: O Santíssimo, bendito seja, disse: "Se Eu criar o mundo baseado unicamente na misericórdia [Divina], o pecado irá se multiplicar [pois a tentação de pecar é muito grande quando não há sanções]. Caso Eu me baseie tão somente em um julgamento [Divino] severo, como o mundo poderá sobreviver? [A natureza humana é fraca e precisa de misericórdia e paciência]. Ao invés disso, Criarei (o mundo) com julgamento e misericórdia, e então haverá alguma chance de sobreviver (5)".
Deste modo, nossas transações econômicas são eficientes quando combinam adequadamente misericórdia e julgamento. Emprestar dinheiro é uma importante expressão de misericórdia e de beneficência, mas para que seja uma fonte sustentável e construtiva de ajuda mútua, requer uma base de responsabilidade e julgamento.
Fontes:
(1) CM 97:1.
(2) CM 97:4.
(3) CM 70:1.
(4) CM 97:4.
(5) Bereshit Rabá, Gênesis 2:4.
O Judeu Ético Edição N.118 - 23 de julho de 2003
Rabino Dr. Asher Meir
The Jewish Ethicist, um programa do Business Ethics Center of Jerusalem.
tradução: Uri Lam (M.A. em Filosofia) - 04 de julho de 2003.
Fonte:
Business Ethics Center of Jerusalem